NOMADLAND

Cartaz do filme NOMADLAND

Opinião

(texto originalmente escrito pro podcast Cine Alpha, Ep # 21, no Spotify)

Nomadland, o filme do ano de 2021, não tem tradução no título brasileiro, mas a gente pode sim pensar nele traduzindo literalmente, sem medo de errar. Isso porque ele vai falar da terra dos nômades – quem são essas pessoas que moram em trailers, por onde elas andam, o que elas pensam e como percebem o presente e o futuro.

E embora eu tenha dito q este é o filme do ano porque arrebatou os principais prêmios de 2021 – Globo de Ouro, Bafta, Oscar, nas categorias mais importantes – gosto de pensar que a gente está falando de uma obra atemporal. Mas, antes de a gente olhar pra história em si, vale dar uma pincelada na origem dessa jornada que causa tanto impacto na gente.

Todo mundo lembra que os Estados Unidos passaram por uma baita crise em 2008, que afetou o mundo inteiro. Foi aquela crise da bolha imobiliária, que deixou muita gente desempregada e cheia de dívidas pra pagar. Nesse cenário, uma jornalista chamada Jessica Bruder põe o pé na estrada, literalmente, porque ela fica intrigada com um fenômeno cada vez mais frequente: as pessoas que ficaram sem emprego, que não puderam pagar a hipoteca da casa ou o aluguel, nem as contas fixas como água e luz, resolveram deixar tudo pra trás e viver em um trailer (ou uma van adaptada), parando de tempos em tempos pra trabalhar em empregos temporários.

O que a Jessica percebeu é que a maioria dessas pessoas já era mais velha e que não conseguia viver com o valor da aposentadoria. Já dava até pra dizer que elas formavam um tipo de comunidade: elas se ajudavam quando se encontravam pelo caminho, nos estacionamentos, nas beiras de estrada, nos empregos temporários e, diga-se de passagem, mal pagos. Mas, ao mesmo tempo que compartilhavam esse estilo de vida do sonho americano às avessas (não tem família, nem cachorro, nem jardim, nem churrasqueira), sentiam solidão e o peso da injustiça social nos ombros.

Depois da experiência de ter convivido com os nômades contemporâneos, Jessica Bruder escreveu o livro Nomadland: Sobrevivendo na América do século 21, que chamou a atenção da atriz e produtora Frances MacDormand, que comprou os direitos do livro e convenceu a diretora Chloe Zhao a filmar a história. E voilà! Temos o filme que deu à Chloe Zhao, essa diretora jovem, americana de origem chinesa, inúmeros prêmios, inclusive o título de 2ª cineasta mulher a levar o Oscar pela direção na história do Oscar – o que é algo inadmissível de se pensar, mas real. Por isso nunca é demais lembrar disso.

Chloe Zhao adaptou o roteiro e dirigiu esse filme que diz respeito, sim, a um momento muito específico da história americana, mas é atemporal no drama humano de pessoas que perdem suas referências, sua sensação de pertencimento e precisam buscar a estabilidade no instável, na mobilidade, no desapego. É um filme essencialmente sobre a procura de si, sobre a procura por um meio de sobrevivência diferente do tradicional, porque viver do jeito que sempre foi já não tem mais cabimento.

Dito isso, pra colocar a gente no contexto do filme, vamos à narrativa. Frances Macdormand é Fern, uma senhora que trabalhou anos com o marido em uma fábrica no meio do nada, fica viúva e é a última a abandonar a cidade quando a empresa vai à falência. Sem filhos e sem vínculos, resolve adaptar uma van e transformá-la em sua casa sob quatro rodas. Ela sai pelas estradas dos Estados Unidos com poucos pertences e a sensação de que é preciso viver um dia de cada vez. Consegue empregos temporários aqui e ali e vai encontrando, pelo caminho, pessoas que estão na mesma situação. Aos poucos, se junta a eles, nessa comunidade nômade que se ajuda e vai compartilhando suas histórias.

É um filme que potencializa os extremos: embora tenha esse lado dramático de uma vida aparentemente de gente sem-teto, apresenta também a liberdade de ir e vir no clássico estilo de road movie, em que os personagens vão se transformando à medida em que percorrem o trajeto determinado pela narrativa. Valoriza os momentos em volta da fogueira, a natureza, o trabalho voluntário, o ócio criativo, a liberdade, mas também mostra a privação de conforto e segurança com a saúde, por exemplo. Apresenta a crueldade do mundo empresarial que não retorna ao cidadão uma compensação devida por uma vida de trabalho, mas possibilita o trabalho temporário – é verdade que sem garantias ou segurança – em empresas como a Amazon, por exemplo, que aparece no filme em alto e bom tom. Vale dizer que, aqui, estamos falando fortemente da precarização do trabalho e desvalorização da mão de obra, nessa nova modalidade que surgiu com esse novo contrato social do século 21.

Um ponto fundamental que dá ao filme um teor original e autêntico está nos personagens. Frances MacDormand é Fern, a protagonista, e todo mundo conhece essa atriz. Mas praticamente todos os outros nômades encontrados pelo caminho não são atores profissionais. Eles são nômades e representam eles mesmos no filme. Uma das preciosas escolhas da diretora Chloe Zhao foi justamente essa: manter essa áurea real da relação entre os personagens e deles com eles mesmos, com suas histórias. Frances é talentosa o suficiente pra embarcar nessa jornada e se deixar contaminar pela energia e pelo entendimento desse novo modo de vida, vindo de quem realmente vivia aquilo na realidade.

Segundo a própria Fern diz no começo do filme, os nômades contemporâneos podem não ter casa, mas eles têm um lar. E, apesar de todas as privações e desafios, fica a mensagem de que o lar está dentro de cada um. Assim como os problemas – se não forem resolvidos, dormimos com eles, seja numa casa fixa, estável e confortável; seja sob quatro rodas. É preciso olhar pra dentro e saber o que é possível naquele momento e qual é o seu desejo.

O desfecho de Nomadland mostra bem isso. Sem romantizar, nem dizer que a liberdade não tem seu preço. É isso que faz o filme ser atemporal – uma reflexão que nunca se encerra.

 

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