FICÇÃO AMERICANA – AMERICAN FICTION

Cartaz do filme FICÇÃO AMERICANA – AMERICAN FICTION

Opinião

Se você acha inadequada a palavra nigger no título do conto “O negro artificial”, de Flannery O’Connor, preste atenção na primeira cena de FICÇÃO AMERICANA. É verdade que o termo é extremamente ofensivo porque implica insulto racial. Mas, nos anos 1950, tinha o objetivo de ofender mesmo e de deixar clara a supremacia branca. Portanto, carrega muitas nuances. Uma aluna que se ofende com o título, protesta e se retira está nos dizendo que prefere não enxergar o racismo nela mesma.

FICÇÃO AMERICANA, que levou o Oscar de melhor roteiro adaptado, fala da nossa dificuldade deixar de lado os personagens esteriótipos, que constroem nosso entendimento do mundo e referendam nosso comportamento. O professor universitário Thelonious ‘Monk’ Ellison quer discutir a narrativa, mas a aluna branca só vê a negritude carimbada na escolha de palavras; ele quer continuar escrevendo bons livros, mas as pessoas querem ler histórias negras padronizadas, com luta social, disfunção familiar, problemas policiais, violência. Com o argumento de que é preciso construir personagens negros com trajetórias difíceis de vida que  representem os afroamericanos, livros que têm este perfil vendem mais. Ou vendem mais porque nos interessa reforçar padrões de comportamento para manter tudo como sempre foi?

No fim das contas, é o que as pessoas querem consumir: histórias dentro da zona de conforto, assim como faz a autora negra, que escreve o que o público quer ler. Inconformado, Monk vai subverter a sua lógica da boa literatura e se rende à demanda do mercado. A discussão ganha a dimensão da lei da oferta e procura, e a produção artística padronizada na literatura e no cinema permeia o filme todo com inteligência e humor. É isso que gera a reflexão. No inconsciente coletivo, pessoas pretas pertencem ao cenário de violência e rejeição. Quanto menos personagens pretos ocuparem lugares de liderança e poder nos filmes e livros, menos eles pertencerão a esses espaços na vida real. O estranhamento continuará, afinal, a arte imita a vida. Ou será vice-versa?

Mas a verdade é que o filme é sobre um professor de mal com a vida e com a família, que precisa cuidar da mãe que está com Alzheimer e tem a chance de transformar a sua maneira de se relacionar. Simples assim. O racismo costura sua trajetória. Se livros e filmes sobre estereótipos racistas vendem mais porque é o que as pessoas querem consumir, este é um problema de cada um. O que é interessante notar é que a aluna da primeira cena sai da sala porque não consegue encarar a realidade: disfarçada de justiça, sua atitude traduz a necessidade de ser absolvida diante de uma existência racista incontestada. Como disse Monk, quem não conseguir lidar com a piada, que se vire.

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