76º FESTIVAL DE CINEMA DE VENEZA

De 28 de agosto a 7 de setembro, Veneza é só cinema. Filmes exibidos no festival depois rodam o mundo, mas quem está por aqui como eu tem o privilégio de assistir em primeira mão. A delícia do cinema de hoje – e que está estampado no film de abertura – é que vivemos, sim, numa aldeia global. Já não tem fronteira pra nada, o que coloca todas as nossas questões, independente de raça, cor, credo, numa só prateleira. Somos todos diferentemente iguais. Aqui ou na China.

Ou no Japão – quem abre o festival esta noite é La Vérité, do cineasta japonês Hirokazu Koreeda. Ele que levou a Palma de Ouro em Cannes em 2018 com Assunto de Família, continua no tema. Família, que também é tema de  Depois da Tempestade, Nossa Irmã Mais Nova, Pais e Filhos, O Que Eu Mais Desejo. Mas sai da cultura japonesa pra mergulhar na europeia – e mais especificamente, na francesa. Escala as ícones francesas Catherine Deneuve e Juliette Binoche pra falar da relação mãe e filha e pra falar de cinema. Deneuve é atriz, Binoche é roteirista, casada com um ator de segunda linha, feito por Ethan Hawke. Elenco afinado, estrelado, de ponta, na intimidade familiar que tanto tem em comum no mundo todo. Basicamente sobre relações humanas, suas particularidades e, como diz o título, suas verdades. Que, invariavelmente, dependem do que escolhemos contar sobre nós mesmos.

La Vérité concorre ao prêmio máximo, o Leão de Ouro, mas não leva. É elegante, delicado, profundo. Mas não é original. Festival é assim – vai esquentando os motores devagar, às vezes somos acachapados por uma pérola – como foi ano passado com Roma, de Alfonso Cuarón – e já sabemos quem vencerá.

La Vérité, de Hirokazu Korreda

Ad Astra, de James Gray

Marriage Story, de Noah Baumbach

AMOS GITAI E SEU CINEMA COM CRÍTICA E POESIA

Nem um dos dois filmes de Amos Gitai está na competição aqui no 75º Festival de Veneza. A essa altura do campeonato, nem precisava. Seu cinema é naturalmente crítico, mas não sem poesia – e, como ele diz, “um cineasta não pode se divorciar dos eventos reais, precisa falar deles e o Oriente Médio produz diariamente muito material para reflexão.” Amos apresenta A Letter to a Friend in Gaza e A Tramway in Jerusalem – que são coisas separadas, mas que se complementam. Bem intimamente, inclusive.

A Tramway in Jerusalem simula “o que poderia ser a relação entre pessoas de diferentes nacionalidades e religiões, se houvesse menos conflito”, explica o diretor na entrevista à imprensa há pouco em Veneza. “Me interesso pelo quebra-cabeça humano e não pelo cinema homogêneo.” O filme é essencialmente o que diz o título: dentro de um trem que cruza os diferentes bairros de Jerusalém, pessoas com diferentes histórias de vida se encontram. Elas se comunicam – pacifica ou violentamente, com ironia, humor ou musicalidade, mostrando o quanto somos iguais. (Aliás, quanto mais a gente vive, mais percebe o quanto as histórias de vida se repetem. Seja lá onde for.)

Filmado inteiramente dentro de um trem, tem casal israelense discutindo a relação; padre católico citando trecho bíblico; a mãe judia se queixando que o filho não lhe deu netos; a mulher israelense acusando, precipitadamente, o palestino trabalhador; a palestina com nacionalidade holandesa, amiga da israelense com nacionalidade alemã; a israelense belicista fazendo a cabeça do turista francês; o policial israelense abusando do poder. E por aí vai. O céu é o limite.

Depois de filmar A Tramway in Jerusalem, Amos Gitai (também de Free Zone) escreveu o curta A Letter to a Friend in Gaza – textos sobre a intolerância, o desrespeito, o desamor. Carrega o questionamento da geração mais jovem sobre o comportamento de seus pais, que deixaram a situação chegar no ponto em que estamos hoje – tenham sido eles omissos ou coniventes. Temas humanos e corriqueiros – já que, como diz uma das atrizes, “amar é simples demais”. Viver no conflito parece ser, para a natureza humana, um desafio bem maior.