FOGARÉU

Cartaz do filme FOGARÉU

Opinião

Competição Première Brasil no Festival do Rio

Assistido na 72ª Berlinale _2022

FOGARÉU é mais uma narrativa sobre histórias que precisam ser contadas – e que a gente nem tem noção de que existem neste formato do absurdo. Na histórica Cidade de Goiás, antiga capital do estado de Goiás, pessoas neurodiversas eram chamadas de “bobas” e adotadas por famílias ricas da cidade, para serem empregados domésticos, praticamente numa

relação de escravidão. Eram consideradas “da família”, mas só até não terem mais serventia, como diziam. A diretora Flávia Neves está em Berlim para o lançamento deste seu primeiro longa metragem. Seu filme foi selecionado na mostra PANORAMA, numa peneira por que passaram centenas de filmes do mundo todo – e isso não é pouca coisa.

“Não temos interesse em igualdade, preferimos continuar tendo miseráveis pra nos sentirmos caridosos”, disse Flávia Neves na entrevista ao Cine Garimpo, depois da sessão de imprensa de FOGARÉU. “Preferimos o apagamento da nossa cultura, negando as violências e, assim, dando reforço para que elas se perpetuem.” Este é o caminho mais fácil mesmo, não falar.

A diretora conta que sua mãe foi uma dessas pessoas adotadas por famílias de classe alta, passando de casa em casa pra fazer serviços domésticos. Vínculos serviçais, frágeis, nocivos. Até que termina na casa do prefeito da cidade, que dá origem ao personagem do filme. Fernanda, feita pela atriz Bárbara Colen (também em Aquarius e Bacurau), vive essa experiência inspirada na vida da diretora e volta para a vila Cidade de Goiás em busca de suas origens. Seu tio é o prefeito, o manda-chuva, o coronel. Ele que manda solta e prender – é ele quem determina o que é ser normal.

Aliás, FOGARÉU é também sobre isso, sobre a normatização da lógica da dominação, do machismo, da colonização. Fernanda volta para a cidade porque quer saber quem são seus pais. Ao entrar em contato com os tios, primos e empregados da casa, percebe que a dinâmica é  perversa e que ela precisará romper barreiras profundas pra encontrar a verdade. “Filmar nessa paisagem do cerrado traz essa metáfora fundamental do ciclo do fogo, de uma paisagem que queima pra renascer”, diz ela. “No cerrado é tudo profundo: as árvores crescem pra baixo, há uma imensa concentração de água no subsolo e tudo isso está ameaçado.” Desvelar parece ser o exercício quando pensamos nesse cerrado em que as relações sociais são tóxicas, em que o solo e a água são ameaçados pelo garimpo e pelo agronegócio, em que as terras indígenas (mais uma referência às nossas origens) bate de frente com o que ainda se chama de progresso.

Pra contar essa história, Flávia constrói uma realidade paralela, dos sonhos e do sobrenatural, porque nem tudo é explicável. Personagens neurodiversos são representados por atores de teatro e fazem seu papel com a sensibilidade necessária pra trazer humanidade. Trancafiados dentro deles mesmos, esses personagens são rotulados como anormais, enquanto o que devemos é nos perguntar: quem é que determina o que é uma pessoa normal, afinal de contas? Me remete à “O Alienista”, de Machado de Assis, em que Simão Bacamarte foi mandando pro hospício os loucos da cidade, até que percebe que prendeu a cidade inteira. Quando ele se dá conta, louco é quem está do lado de fora, ditando as regras.

Em FOGARÉU, essa noção de normalidade é referendada pela lógica social do poder e libertar-se disso é o que Fernanda quer ao buscar a família. Histórias pessoais têm essa força da narrativa que tem necessidade de emergir; das violências físicas, morais, psicológicas que precisam ser abordadas sob outro ponto de vista. Com uma equipe feminina, Flávia traz esse universo da mulher à tona, para que a gente fale disso. Reforço sempre o papel do cinema em oferecer essas narrativas para que a gente mergulhe em outras experiências. Daquelas que já conhecemos, temos suficientes.

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